MÚSICA VOCAL, FOSFOSOL E O CLUBE DA BOLINHA
(Tommy Beresford, 21.05.2014)
Preparativos, convocações, expectativas, protestos… Estamos em pleno “inferno astral” da Copa do Mundo 2014 que — finalmente — será realizada no Brasil. Faltando pouco mais de vinte dias para o mundial, o país do futebol está a cada minuto mais desejoso de que o torneio chegue logo e, sendo a copa nas terras brasileiras, todos os setores do país estão voltados para este grande certame, inclusive o cenário cultural, certo ?
Nem tanto. Quando a escolha das sedes foi anunciada, otimista que sou, achei que todas as cidades se encheriam de espetáculos, musicais, lançamentos de livros e peças de teatro em torno do “fator bola”. Mas onde estão afinal esses eventos ? Pelo menos no Rio de Janeiro, onde as ruas estão mais para faixas de protesto do que flâmulas verde-amarelas, só encontro uma grande estreia futebolística nos palcos da cidade neste mês de maio que precede a chamada Copa das Copas.
Que seja assim então. “Samba Futebol Clube”, em cartaz no CCBB-RJ, vale por muitos. Juntar samba e futebol parece fácil, e o espetáculo poderia cair no lugar comum de ser um desfile de músicas de fácil apelo popular untadas com coreografias que remetessem simplesmente ao movimento dos pés. Mas o diretor Gustavo Gasparani optou por escolher a dedo cada profissional com quem trabalhou na produção deste espetáculo, como num concurso onde cada quesito é decisivo: como se fosse, por exemplo, o desfile de uma escola de… samba.
E só houve acertos. A começar pelo excelente roteiro, com falas claras, emocionantes e acessíveis ao público, resultantes de um trabalho de busca cuidadoso de João Pimentel: numa peça que prima pela música, os deliciosos textos são a grande surpresa e, sem dúvida, o principal trunfo da encenação. O primeiro ato (ou, se preferirem, primeiro tempo) é focado mais nos torcedores e jogadores do dia a dia, com destaque para divertidas homenagens aos times cariocas; o segundo, ainda melhor que o primeiro, é mais emocional, e joga luz na abrangência do futebol, reverenciando grandes ídolos de todos os tempos e a alegria deste esporte conhecido e celebrado no mundo inteiro.
E faça-se de fato a luz: com a irretocável iluminação de Paulo César Medeiros engrandecendo os adequados figurinos de Marcelo Olinto e a discreta cenografia de Marcelo Lipiani, há muitos atrativos inclusive visuais para o espectador. E que bom: tomara que todos voltem mais de uma vez, até porque há muitos detalhes que merecem ser apreciados com cuidado; os vídeos, por exemplo, são um espetáculo à parte. Amantes de futebol de todas as idades se emocionarão ao se depararem com grandes ídolos de todos os tempos, muitos já esquecidos, outros relegados ao ostracismo. “Samba Futebol Clube” dá uma boa espanada em nossa empoeirada memória, nos fazendo relembrar de quem de fato tornou este esporte grandioso em nossos campos.
As canções, ora belas, ora emblemáticas, fruto inicial de uma pesquisa bem executada por Alfredo Del Penho e inteligentemente selecionadas pelo diretor, não estão ali por acaso: com excelentes arranjos vocais de Maurício Detoni, que também preparou o elenco, cada canção emoldura uma legítima emoção. Com tantos trunfos para trabalhar, coube ao diretor musical Nando Duarte costurar tudo com maestria — trocadilho inevitável. Há momentos primorosos, seja na escolha das canções, seja nos arranjos vocais, mas especialmente em como tudo isso foi executado com competência técnica sem que se perdesse a emoção e o bom humor, humor aliás que ilumina todo o espetáculo.
Há que se destacar a sabedoria da produção em decidir quem deveria “defender” mais diretamente cada canção, com todas as escolhas solísticas extremamente adequadas para a característica de cada timbre, bem como os momentos onde o trabalho de grupo e as harmonizações seriam mais interessantes também para a dramaturgia, valorizando e colocando a música vocal, sempre tão bem executada pelos cariocas, no lugar de destaque que merece.
Mas nada disso funcionaria sem um elenco tão empenhado quanto correto. Seria injusto destacar apenas um ou dois de um grupo tão competente e (literalmente) afinado. Entre mais novatos e mais experientes no mundo dos musicais, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau e Rodrigo Lima brilham intensamente mas, se é para ser injusto, não posso deixar de apontar o experiente Pedro Lima e o surpreendente Alan Rocha, de vozes tão belas quanto díspares, como incríveis geradores de atenções extremas e lágrimas furtivas. Tudo é tão belo que por vezes o público nem sabe se deve aplaudir para não macular o enlevo. Mas é preciso citar também que cada um dos ótimos cantores atua com extrema competência também como atores: as caras e bocas estão todas lá, todas bem trabalhadas e a serviço do texto e da intenção cênica proposta.
“Samba Futebol Clube” consegue mostrar ao público que história, canto e dança podem se misturar a um tema tão popular como o futebol, intercalando leveza e força, emoção e vigor, delicadeza e bom humor. É preciso destacar também que a produção contou com o auxílio luxuoso do diretor de movimento Renato Vieira, que não deu descanso para o elenco. É notório que todos tiveram literalmente que mostrar que jogam em todas as posições, em belas e, pelo menos para o público, difíceis coreografias, representando com garbo o bailar dos grandes jogadores, a alegria da torcida e o que se espera de um bom musical.
Gustavo Gasparani marcou um belíssimo gol, e se afirma como um dos mais interessantes realizadores da cena teatral carioca desta década. Com mais este instigante espetáculo, o diretor acertou ao ousar falar do óbvio com enorme competência. Sem se preocupar com firulas e superproduções, Gustavo driblou possíveis apelações do tema e atingiu em cheio a memória afetiva (e esportiva) do espectador. Ficarei agora na torcida não somente para que o Brasil consiga ser hexacampeão, mas também para que o cenário teatral carioca se contagie e nos faça muito feliz quando, como bem cita a peça, o ano finalmente começar.
(Tommy Beresford, 21.05.2014)